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sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Decodificando Meia-Noite em Paris


Os personagens referenciados no filme de Woody Allen
Texto de Sérgio Mayr



Gil Pender (Owen Wilson) e Inez (Rachel McAdams), sua noiva, passam uma temporada em Paris, acompanhados dos pais desta, John (Kurt Fuller) e Helen (Mimi Kennedy). O futuro sogro, com compromissos de negócios na capital francesa, é um republicano empedernido, adepto da invasão do Iraque levada a cabo por George W. Bush e seus ideólogos “neocon” e com aversão à neutralidade francesa em relação a essa iniciativa bélica desastrosa, além de partidário da organização de ultradireita denominada “Tea Party”, voltada ao resgate dos valores inaugurais do país e em repúdio às necessárias reformas (econômicas, sociais, de saúde pública, etc.) capitaneadas pelo governo de Barack Obama.



Woody Allen pinta o retrato preciso de uma afluente e emblemática família americana, com todos os seus membros, inclusive a noiva, quase que completamente desprovidos de inclinação artística ou intelectual, com mãe e filha sempre voltadas ao interesse fútil pela ida às compras: o que importa é o que tem valor material. O cineasta não perde a chance de fustigar a tacanha direita americana e o fundamentalismo cristão com frases mordazes em alguns diálogos.

O filme, ao som e “swing” da música inspirada no jazz cigano do belga Django Reinhardt (1910/1953), composta e executada pelo francês Stephane Wrembel (a música “Bistro Fada”, ausente dos créditos) e recorrente nos 94 minutos da obra, abre com várias cenas de locais fundamentais de Paris que acalentam as lembranças daqueles que conhecem e adoram a magia da cidade, com ou sem chuva. A fita apresenta um matiz autobiográfico, já que o próprio Woody Allen, no começo da carreira, quando escrevia roteiros para comédias, passara uma temporada na inigualável cidade da região de Île-de-France, com aspirações literárias: Gil Pender/Owen Wilson é o seu “alter ego”, não somente no pendor literário, mas também no que concerne aos trejeitos e à maneira de falar; aliás, assim como Larry David em “Tudo Pode Dar Certo”, de 2009, e vários outros atores já dirigidos por Allen em filmes sem o próprio atuando. Owen Wilson em uma atuação no ponto certo, sem exageros, sem histrionismo: em uma só palavra, ótima.



Paul (Michael Sheen, excelente na afetação) é o amigo pedante de Inez encontrado por acaso, com a respectiva namorada, em um dos bistrôs da cidade. Em uma visita à notória escultura em bronze, “O Pensador”, de Auguste Rodin (1840/1917), a guia turística interpretada por Carla Bruni percebe o padrão pernóstico das falas de Paul e o contesta em uma afirmação: Camille Claudel (1864/1943), assistente e aprendiz de Rodin e também talentosa escultora que vivera à sombra do mestre, teve somente um tumultuado caso amoroso com este, sendo que a paixão não plenamente correspondida a levaria à loucura; Rose Beuret era a companheira “oficial” de Rodin. Depois, empreendem um passeio pelos jardins do palácio de Versailles, em que Paul, ostensiva e impiedosamente, dispara toda sua erudição exibicionista (os cães também costumam marcar território, mas de forma distinta) para o deleite das mulheres presentes, inclusive Inez; contudo, para a indisfarçável irritação de Gil.

Inez, mais receptiva ao charme pseudointelectual de Paul, sempre demonstra um acentuado desinteresse pelo que Gil fala ou deseja e acha uma insensatez caminhar nas ruas de Paris sob chuva, algo que, pelo contrário, encanta Gil.

Enfadado com os compromissos fúteis que eram do gosto da noiva e de sua família, Gil resolve perambular pelas ruas de Paris uma noite depois do jantar, em busca de inspiração para o romance que esboça na mente e em algumas páginas. Na tentativa de encontrar o caminho de volta ao hotel, ele se perde, porém, na Paris dos anos 20. E, assim, acaba ele em uma festa organizada por Jean Cocteau (1889/1963), poeta, romancista, cineasta, designer, dramaturgo, ator e encenador de teatro francês. Cole Porter (Yves Heck) ao piano e o casal F. Scott (Tom Hiddleston, perfeito) e Zelda Fitzgerald (Alison Pill) em conversa animada com outros convivas.

Cole Porter (1891/1964), produtivo compositor popular americano, autor de inúmeros clássicos do cancioneiro norte-americano, toca no piano a divertida canção que simboliza o período que passara na França e que posteriormente seria o destaque de um espetáculo de sucesso na Broadway em 1928, chamado “Paris”: a canção é “Let’s Do It (Let’s Fall in Love)”. Clique para ouvi-la na versão do CD original de Cole Porter – American Song Book:



Várias personalidades da época: o toureiro espanhol Juan Belmonte (1892/1962), amigo muito próximo de Ernest Hemingway e retratado em dois de seus livros (também, curiosamente, se suicidaria com uma arma de fogo em 1962); Djuna Barnes (1892/1982), escritora modernista; Josephine Baker (1906/1975), a “Vênus Negra”, dançarina, cantora e atriz americana, mais tarde francesa naturalizada, exímia no “charleston”, a frenética dança de jazz então em voga e que é focalizada no filme.

O grande poeta modernista Thomas Stearns Eliot (David Lowe), também dramaturgo e crítico literário, em uma das rondas noturnas de Gil Pender, é vislumbrado rapidamente convidando este a entrar em um automóvel dos anos 20. T. S. Eliot (1888/1965), americano de nascimento e britânico naturalizado, é autor do notável poema “A Terra Desolada”. Prêmio Nobel de Literatura de 1948. “Prufrock”, citado por Gil com admiração, se refere ao primeiro poema de sucesso de Eliot, publicado aos 22 anos, com muitas das características do modernismo: “The Love Song of J. Alfred Prufrock”.

Zelda Sayre Fitzgerald (1940/1948), tendente à depressão, ciclotímica, não sendo raras as tentativas de suicídio, com aspirações artísticas próprias, tinha inveja do talento literário do marido F. (Francis) Scott Fitzgerald e o levava a noitadas e bebedeiras que prejudicavam o trabalho deste que já havia publicado, em 1925, o livro que é considerado uma das obras-primas da literatura norte-americana: “O Grande Gatsby”, cáustica crítica à sociedade da época. Fitzgerald (1896/1940) aproveitava as horas de sobriedade para recuperar o tempo perdido e escrever. Sua carreira não foi prolífica, com apenas mais um romance festejado pela crítica, em 1934: “Suave é a Noite”. Depois, alguns contos e contratos de roteiros em Hollywood, para sobreviver. Ao falecer de um ataque cardíaco fulminante, deixou um romance inconcluso, “O Último Magnata”, mas com muitas notas manuscritas que renderam ensejo à publicação póstuma providenciada pelo amigo e crítico literário Edmund Wilson.


O casal Fitzgerald na década de 20


E tal como eles foram retratados no filme por Tom Hiddleston e Alison Pill

Zelda, diagnosticada com esquizofrenia, fora internada em uma instituição psiquiátrica francesa em 1930. A despeito disso, escreveu um romance semiautobiográfico, “Save Me the Waltz”, antes de perecer, em 1948, em um incêndio em uma das alas do hospital psiquiátrico no qual se encontrava, já nos Estados Unidos.

Ernest Hemingway (Corey Stoll, fiel à persona difundida mundo afora), cioso de sua escrita direta, econômica e despojada, na época flagrada pelo filme estava no primeiro dos quatro casamentos, este com Hadley Richardson, e já havia escrito o primeiro e elogiado romance, “O Sol Também Se Levanta”, em 1926. Era muito próximo do casal Fitzgerald e sempre dava conselhos a F. Scott, para que este se libertasse do jugo obsessivo de sua esposa e se dedicasse mais ao trabalho, ao precioso dom da escrita. Hemingway foi laureado com o Nobel de Literatura em 1954.


Ernest Hemingway. Foto: Robert Capa

As frases de Hemingway (1899/1961) presentes no filme são verdadeiras pérolas de sagacidade, principalmente aquela concernente à competitividade entre os escritores: “Nunca pergunte a opinião de outro escritor sobre algum trabalho em andamento, pois, se for ruim, ele dirá isso; se for muito bom, a inveja o fará dizer igualmente que não é bom”.


Hemingway, retratado por Corey Stoll

Adriana, para a qual “os escritores são sempre cheios de palavras”, é a personagem fictícia interpretada com talento ímpar por Marion Cotillard: sua presença em cada cena é fascinante e enriquece esta obra inspirada de Woody Allen. Caso amoroso de Pablo Picasso (Marcial Di Fonzo Bo, de incrível semelhança), o genial pintor cubista ainda em seus anos de formação.



Picasso (1881/1973), muito ranzinza no filme e com a característica, mas ridícula franja dos primeiros anos (é mais conhecida a figura do pintor calvo, sem camisa, em frente às telas de pintura em idade mais avançada), inicialmente dominara a pintura clássica e, posteriormente, explodiria os objetos em vários ângulos e facetas, algo típico do estilo cubista inaugurado alguns anos antes juntamente com Georges Braque (1882/1963); entretanto, naqueles tempos, muitos consideravam superior o surrealismo inspirado pelo cubismo praticado pelo mestre catalão Joan Miró (1893/1983).


A Mulher Chorando - Pablo Picasso (1937)

Anteriormente, Adriana já havia tido relacionamentos amorosos com artistas como Amedeo Modigliani (1884/1920), o pintor italiano radicado na França, das figuras alongadas e de vida trágica e curta, e o já citado Braque. Enquanto que Gil venera a Paris dos anos vinte, pela efervescência cultural e intelectual, ela prefere a “Belle Époque” (final do século XIX até a 1ª Guerra Mundial), e é nesses anos, a era dourada, mais precisamente nos anos 1890, que o casal janta no esplendoroso restaurante Maxim’s e dá uma esticada, depois, no célebre cabaré Moulin Rouge, com suas famosas dançarinas de “Can-Can”, sendo inevitável a presença de Henri de Toulouse-Lautrec (Vincent Menjou Cortes) fazendo esboços em uma mesa.


Woman in a Corset - Henri de Toulouse-Lautrec (1896)

Travam conversa com o artista e logo depois chegam Paul Gauguin (Olivier Rabourdin) e Edgar Degas (François Rostain), ambos pintores e também escultores. O que se depreende é que todos, Lautrec (1864/1901), Gauguin (1848/1903) e Degas (1834/1917), se sentem insatisfeitos na época em que vivem: a preferência dos artistas do final do século XIX residia na Renascença.


"De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?" - Quadro de Paul Gauguin (1897) Mus. de Belas-Artes - Boston. Uma tela de 4 metros, pintada em apenas um mês. Da direita para esquerda é possível notar uma evolução da vida humana. Começando com uma criança no canto, um adulto ao meio em contato com o conhecimento e no outro extremo uma velha anciã.


Edgar Degas , Musiciens a l'Orchestre

Gertrude Stein (Kathy Bates), americana de extração judaica, de família rica, homossexual, vivia em Paris cuidando do inestimável acervo de arte da família com a companheira Alice Babette Toklas (que abre a porta para Hemingway e Gil Pender no filme) e mentora de jovens escritores e artistas em geral. Havia um círculo formado em torno dela: Picasso, Henri Matisse, Georges Braque, André Derain, Juan Gris, Guillaume Apollinaire, Francis Picabia, Ezra Pound, Hemingway e James Joyce. Também era escritora e poeta vanguardista, autora de “Três Vidas” e “A Autobiografia de Alice B. Toklas”. Ela recebe de Gil um manuscrito de romance para sugestões.


Gertrud Stein fotografada por Man Ray, tendo ao fundo seu próprio retrato pintado por Pablo Picasso.

Em uma das cenas na casa de Stein (1874/1946), localizada em “27 rue de Fleurs”, é avaliado um quadro de Matisse (1869/1954) em 500 francos, o que faz Gil Pender, estupefato pelo baixo preço, especular se não haveria mais daqueles quadros à venda.


Alegria de Viver - Henri Matisse (1905)

Outra cena e os surrealistas Salvador Dali (Adrien Brody), Luis Buñuel (Adrien de Van, com os mesmos traços duros do diretor) e Man Ray (Tom Cordier) em uma mesa, o primeiro com a ideia fixa em rinocerontes.


Adrien Brody como Salvador Dali no filme. Repare na foto mais abaixo a incrível semelhança.

Quando Pender discorre sobre questões existenciais que o afligem, Buñuel (1900/1983), o cineasta espanhol, diz que isso daria um bom filme; Ray (1890/1976), o fotógrafo americano, pondera que renderia uma boa fotografia; e o pintor e escultor espanhol Dali (1904/1989) fala dos “rhinoceros”. Em conversa reservada com Buñuel, Pender dá a ideia geral do que viria ser o genial filme “O Anjo Exterminador”, de 1961, em que pessoas em uma festa não conseguem deixar o salão e lá permanecem confinados sem nenhuma razão aparente: uma divertida inclusão no roteiro, de um cinéfilo, para cinéfilos.


Salvador Dali e Man Ray em Paris,1934, arregalando os olhos para o fotógrafo Carl Van Vechten


Famosa foto de Man Ray: Lágrimas de Vidro (1930)


Uma das várias estátuas de Rinocerontes de Salvador Dali - "The Rhino Dressed on Lace" - Puerto José Banús, Marbella, Espanha

Ciente, pela filha, das andanças noturnas de Gil pela cidade e intrigado, o pai de Inez contrata um detetive particular, o divertido Duluc (Serge Bagdassarian). Este é responsável por uma das cenas mais hilariantes do filme.

Gil Pender, em uma das cenas, sai da lendária Livraria “Shakespeare & Company”, atualmente no terceiro endereço (37 rue de la Bûcherie), fundada em 1919 pela livreira e editora Sylvia Beach (1887/1962) e situada nos anos 20 na “Rive Gauche”, mais precisamente em “12 rue de l’Odéon”. Lá se reuniam, usualmente, Hemingway, o poeta americano expatriado Ezra Pound, James Joyce, o romancista inglês Ford Madox Ford, Fitzgerald, Gertrude Stein, Man Ray e outros artistas da chamada “geração perdida”, denominação cunhada por Stein. Beach editou “Ulysses” de Joyce, em 1922, obra recusada por vários outros editores e marco da literatura mundial, impregnado do chamado “fluxo de consciência” das personagens.



Numa das cenas iniciais do filme, o comentário feito por Gil de que James Joyce, certa vez, teria sido visto comendo salsicha com chucrute na Brasserie Lipp não interessa em nada à noiva filisteia. A propósito, é uma pena que um episódio interessante não tenha sido incluído no roteiro: o fracassado encontro entre duas divindades da literatura modernista, Joyce e Marcel Proust (autor da obra-prima, em sete volumes, “Em Busca do Tempo Perdido”, publicada entre 1913 e 1927) em 18/05/1922, este que faleceria alguns meses depois de pneumonia. Para comemorar a estreia do espetáculo de balé “Le Renard” de Igor Stravinsky, o rico casal britânico Violet e Sydney Schiff havia convidado para um jantar no Hotel Majestic em Paris, além de Stravinsky, o empresário russo de balé Serge Diaghilev, Pablo Picasso, Proust e Joyce. Ambos os escritores quase não trocaram palavras. No taxi, com o casal inglês depois da comemoração, somente Proust (1871/1922) falou o tempo todo, limitando-se Joyce a observar. Gil Pender poderia ter entrado nesse taxi. O “não-evento” é detalhado em um livro de Richard Davenport-Hines: “A Night at the Majestic: Proust and the Great Modernist Dinner Party of 1922”.

Uma das obras mais dispendiosas do cineasta nova-iorquino, com um orçamento estimado em U$17.000.000; todavia, até 20 de novembro de 2011 já obteve um rendimento bruto, apenas nos Estados Unidos, de U$55.600.128.



O filme remete, no realismo mágico, a outro êxito de Woody Allen: “A Rosa Púrpura do Cairo”, de 1985. O espectador menos flexível, mais realista, deve procurar alcançar o que se chama de estado de “suspensão da incredulidade”. Na arte, enfim, a liberdade poética é irrestrita.

É uma reflexão sobre o tempo e como algumas pessoas acreditam que estejam deslocadas, relegadas à época errada. Contudo, na verdade, o tempo é relativo, ou, mesmo, pode residir somente no plano psicológico. O tempo é um conceito inapreensível, e, segundo Einstein, a respectiva noção é imbricada à do espaço: o espaço-tempo. Uma frase do escritor americano William Faulkner é mencionada no final: “não existe passado”. Estamos no presente, esse fio tênue que nos sustenta: é isso que temos e é aí onde devemos ser e estar e lidar com nossas limitações e frustrações.

O filme é abundante em frases de acentuada perspicácia e há uma fala de Paul que, apesar do cabotinismo da personagem, deve ser ora reproduzida: “Nostalgia é negação – negação do doloroso presente -, uma noção equivocada de que uma época, uma era dourada, é melhor do que aquela em que se vive; uma falha na imaginação romântica das pessoas que acham difícil ocupar-se do presente”.



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